sexta-feira, 7 de agosto de 2020

COMO ERA por Barbara Ras (EUA)

COMO ERA

Por BARBARA RAS

Se eles perguntarem como era, diga que era como o mar 
rolando barris de si mesmo até você na luz sombria da costa, 
diga que era como uma aranha, negra como a noite, grande como a mão de um campesino, 
uma profundidade que poderia equilibrar um pequeno mundo de sujeira tão facilmente quanto um presente de brilhantes
tomates vermelhos estendidos para você, oito de cada vez. 
Se eles perguntarem como se sentiu, diga solitário, 
a princípio, a facilidade de dormir sozinho, quente até sem um lençol, 
então a indiferença de uma estrada de terra que desce a colina, seu pó 
levantado e re-levantado em plumas à medida que cada hóspede partia, 
e depois, diga que era como o gato cego que surgiu do nada 
para se deitar no chão de ladrilhos, levantando o rosto a olhar com olhos de mármore branco. 
Se eles perguntarem o que você ouviu, diga a eles o único som do vigia, 
que tossiu sua única sílaba quando você foi dormir, 
e no final de cada sonho, quando você acordou com um simples apelo—
fique, vá—novamente, a tosse do vigia. 
Se perguntarem sobre sede, diga a eles que ninguém poderia levar água tão longe 
quanto tinha de ser, para que na hora de descansar, 
as pessoas fossem para a torneira na beira dos trilhos do trem 
e colocassem as mãos em concha debaixo da água, baixando o rosto para beber. 
Diga-lhes que um homem poderia ficar ao meio-dia no parque vestindo apenas roupas íntimas 
e implorar por horas com o copo vazio. 
Diga a eles que você poderia sentar-se em silêncio enquanto ouvia frases que você não sabia que sabia;
surgiram no idioma de lá e num lago imperturbado em sua mente;
você poderia voltar flutuando—aquela oração sem importância que reza.
Deixe-me morrer com os dedos dos pés apontando para o sol.
Quando perguntam o que as pessoas eventualmente acabam perguntando;
Como estava a comida? Diga a eles batata, mamón, guanábana, maní,
culturas indígenas trocando de lugar com fome, 
desistindo da vitrine escura da loja cujo estoque é uma mão 
de bananas vendidas uma banana de cada vez, cedendo pequenas pirâmides de limão 
ao lado da estrada e as crianças que cuidam deles, sonhando 
com algumas moedas jogadas na terra.


Versão em português: Alvaro Nassaralla





O poema "Como era" (What It Was Like) de Barbara ras
 está no livro One Hidden Stuff (Pinguim, 2006). Clique para comprar na Amazon.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Jornal Literário Rascunho e dois tapinhas na cara



O Jornal Relevo traz na edição de Fevereiro dois "'tapinhas na cara". Os poemas do russo Boris Pasternak e da brasileira Diana Joucovski podem ser considerados "pílulas ego-dispensadores".

Seguem as "crianças":

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Ser famoso nada tem de bonito, 
Nem levanta ninguém até as alturas. 
Não é preciso vasculhar arquivos, 
Abasbacar-se sobre manuscritos.

Dar-se é a finalidade da criação, 
Não o sucesso ou o sensacionalismo. 
É vergonhoso, além de sem sentido, 
Ser na boca de todos — falação.

É bom viver sem enaltecimento, 
Viver de um jeito, no final das contas, 
A atrair a si o amor do firmamento, 
E ouvir, isso sim, as vozes do porvir.

É bom deixar lacunas no destino 
E não por entre as folhas de papel, 
E assinalar o título e as passagens 
Da vida inteira, em notas sobre as margens.

Deve-se mergulhar no anonimato, 
E tratar de esconder o seu caminho, 
Como se esconde a vila na neblina, 
Quando sequer se enxerga o seu nariz.

Outros irão por sua pegada viva 
Seguir o rumo que você deixou, 
Mas você mesmo não diferencie 
Da derrota, a vitória a que chegou.

E não deve nem em pequena parte 
Renunciar a seu rosto, tal e qual, 
Mas procurar ser vivo, vivo, só 
Vivo e somente vivo até o final. 

Boris Pasternak
<1956>

in: Jornal Relevo
fev-2019




perdão samanta sch
Diana Joucovski

maldição é não ser capaz de amar o texto alheio se for muito mais do que ameno. quero dizer, se é insosso passa reto, se desastroso segura o ego e se surpreende dá uma coceirinha de inveja no cérebro. ah mas a gente aprende... e quem sou eu pra dizer que não? e mais, por que é que vou dizer que não é assim que sou? pois se invejo a frase que eu teria escrito se fosse mais esperta, mas infelizmente continuo sendo eu quando fecho o livro cujos contos começaram, seguiram e terminaram com os finais ou enredos que eu os teria dado. publicados. alguma espécie de déjà vu criativo: só sei que escreveria daquela forma quando termino a coisa. quando é minha vez, a bagaça da minha autoria vai de agradável a abominável como o fim desse texticulo. nunca poderia amar sem odiar simultaneamente um escritor sendo seu semelhante, é disso que sei — digo de boca cheia, mas com o mesmo pesar que se dissesse que odeio meus pais: ana c plath Clarice & woolf, entre outras mulheres. dessa vez de uma desconhecida: a tal da samanta schalguma coisa — já ouviram falar? se não Na Estepe é o que me fez lançar o livro à parede de ódio e prazer. samanta bonita que só ela na orelha detrás — pra quem não sabe: a contracapa dobradinha. em preto e branco também, quando todo mundo fica elegante. ai samanta comprei seu livro justamente pela razão que me faria detestá-lo e agora vivemos um relacionamento abusivo. mas oh, um final subjetivo daqueles! essa foi uma crítica desengonçada com palavrões entrelinhas? (sou uma pessoa crítica, não crítica com c maiúsculo, e por causa dessa revolta sou menos ainda escritora) no entanto se pensarmos bem pode ser que você importe só agora, como a maioria das coisas — é que hoje, como não tem outro dia senão esse, sua mão preta e branca argentina marcou minha cara com um belo de um tapa.



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O poeta líbio que viveu nos Estados Unidos - Khaled Mattawa


Descobri o poeta Khaled Mattawa ao folhear um livro na livraria. Dei de cara com o poema Lactorium e fiquei chocado com a semelhança de ideias que temos. Compartilho muitas compreensões com Mattawa: no meu caso, através de leituras e, no caso do poeta líbio, por ele viver e ter amadurecido nos Estados Unidos. 

O poema Lactorium (abaixo) me impressionou pela amplitude da visão de mundo contemporâneo do poeta, além de sua crítica ao sistema norte-americano de vida, e de sua política externa assassina. Está tudo nesse belíssimo poema, onde Mattawa utiliza uma linguagem que seria para ser irônica, mas que ele brilhantemente a transmuta para algo muito sensível. Ele apenas se vale desse recurso tonal para evidenciar e humanizar sua crítica.

Lactorium
Por Khaled Mattawa

E sua falta de coração e seu desejo por mentiras são leite para mim
E sua autodestruição e seus bodes expiatórios são como leite para mim
Como sua cólera e sua recusa em pagar impostos seu desejo de comprar coisas baratas são como leite      
E suas guerras sujas e seus drones são como leite para mim
Porque as palavras "danos colaterais" e "subproduto" são tão brancas
E sua ansiedade e sua depressão e seu plástico e sua incapacidade de reconhecer
A culpa sobre um certo nível de influência é tudo tão espesso e cremoso
E sua tolerância por injustiça violenta eu bebo isto eu bebo essa espuma densa
E seu atirador ativo é como leite branco para mim e seu racismo é um tipo de leite
E o assassinato de crianças é corno leite para mim o corpo abandonado na rua é como leite
E seu sexismo é como leite para mim sua cultura do estupro
E sua proteção do agressor que é branco e homem é exatamente como leite para mim
E sua adoração aos mais ricos e mais poderosos é como leite para mim
E os anos em que você não trabalhou por urna cura para essa doença porque
você execra esses doentes essas décadas tão longas são como leite para mim
E suas armas são corno leite para mim suas armas preciosas mais preciosas que qualquer coisa
E o sangue dos mortos é como leite de mãe para mim esse derramar
De branquidão os nomes dos mortos e dos enlutados eu continuo engolindo
E sua proteção dos interesses corporativos e dos bancos é como leite para mim
E seu sistema racista de prisões privatizadas é como leite para mim
E seu sistema inadequado de saúde é como leite para mim
E seu sistema educacional com pouca verba é assim como leite para mim
E a palavra pálida "viciada" apaga tudo
E a justiça tem uma bandagem branca sobre seus olhos arrancados
E a palavra "indocumentado" é cheia de vitamina D
E sua força aérea e sua marinha são como leite com toda a branquidão que você derrama nelas
"Áreas de Conflito" por "estabilidade" derramando se alastrando acobertando
E as lágrimas daqueles dormindo em papelões e trapos sob os viadutos leite salgado
Porque o termo "sem-teto" é como a palavra leite eu o bebo e bebê-lo é como
Beber a luz do sol e faz os os ossos fortes e os dentes os dentes
E a frase "não consegue se manter num emprego" é como leite para mim
E seu bullyng e sua maneira de humilhar de todas as maneiras que ferem o espírito é como leite para mim
E sua adoração ao fascista e  seu apoio ao ditador são frios como o leite frio
E dívidas educacionais e uma estrutura catastroficamente se deteriorando e uma infraestrutura catastroficamente se deteriorando
E seu amor pelas mentiras do legisladorzinho são assim como leite para mim
E suas prescrições para analgésicos e suas recargas e suas novas prescrições
E seus medicamentos para ajudá-lo a cagar e ajudá-lo a parar de cagar e as pílulas antiansiedade e os antidepressivos que não estão mais fazendo efeito e os novos antidepressivos que podem estar fazendo efeito ou não e cada companhia farmacêutica pressionando médicos a prescrever mais analgésicos branco branco
Branco e seu desmatamento e sua mineração e seu fracking e suas plataformas de perfuração e todos os lugares arruinados
Para sempre é agora o que foi arruinado pra sempre e inabitável é assim como leite para mim
E o fim de linguagens culturas espécies conhecimentos modos de vida é como leite para mim
E seu desdém e autopiedade e medo são também como leite para mim
E todas as vidas atrofiadas deformadas pelas suas mentiras e suas necessidades
imaginárias são como leite para mim eu bebo e estou bebendo eu engasgo e continuo
nesse sem fim de branco no branco no branco bandeira desenrolando gotejando da borda do nada no nada para sempre fedendo a metano

O poema faz parte do livro POESIA VISUAL 5: A POESIA ESTADUNIDENSE CONTEMPORANEA, Editora Confraria do Vento, em coedição com a produtora cultural Fioretti e o Centro Cultural Oi Futuro.

Segue a biografia do poeta Khaled Mattawa, nascido em 1964, traduzida do site Poetry Fundation

BIOGRAFIA

"Nascido e criado em Benghazi, na Líbia, o poeta Khaled Mattawa mudou-se para os Estados Unidos ainda adolescente em 1979. É bacharel em ciências políticas e economia pela Universidade do Tennessee, mestre em Mestrado pela Universidade de Indiana e doutorado pela Universidade do Tennessee. Universidade Duke. 
Influenciado por Milan Kundera e Federico García Lorca , bem como pelos poetas árabes cujo trabalho ele traduz, a poesia de Mattawa freqüentemente explora a interseção entre cultura, narrativa e memória. Em entrevista no ano de 2007, abordando a conexão entre a sua emigração da Líbia para os Estados Unidos e sua poesia, Mattawa observou: “Eu acho que a memória era muito importante para o meu trabalho como estrutura, que o tom da lembrança, ou a posição de lembrar, é muito importante. Era uma maneira de falar quando eu estava entre decidir ficar e não ficar; e eu decidi ficar. ” 
Mattawa publicou várias coleções de poesias, incluindo Tocqueville (2010), Amorisco (2008), Zodiac of Echoes (2003), e Ismailia Eclipse (1995). Traduziu numerosos volumes de poesia árabe contemporânea, incluindo o Concerto al-Quds (A República Mundial das Letras de Margellos) (2017), de Adonis Pastor da Solidão: Poemas Selecionados de Amjad Nasser (2009), e Miracle Maker: Poemas Selecionados de Fadhil Al-Azzawi (2004), além de coeditar as antologias Dinarzad's Children: An Anthology of Arab American Fiction (2004) e Post Gibran: Anthology of New Arab American Writing (1999). Seu próprio trabalho também foi amplamente antologizado. 
Mattawa foi premiado com vários Prêmios Pushcart e o Prêmio PEN de Tradução Literária, além de uma bolsa de tradução do National Endowment for the Arts, uma bolsa da Fundação Guggenheim, o Alfred Hodder Fellowship na Universidade de Princeton e uma bolsa MacArthur. 
Editor do Michigan Quarterly Review, ele ensinou na Universidade de Indiana; Universidade Estadual da Califórnia, Northridge; e a Universidade de Michigan".

Leitura da hora de dormir para a criança por nascer
Por Khaled Mattawa


Muito depois do sol cair no mar
e o crepúsculo escapar do horizonte como uma folha de veludo
e o ar ficar encharcado de escuridão;
muito depois de as nuvens pairarem acima como pedregulhos
e estrelas rastejarem e estudarem o céu;
muito tempo depois que os corpos se enroscaram, dançaram e vacilaram
e a fadiga os soprou e dobrou
e dormir descarregando seus sonhos e os amassando
e os dormentes mergulhando nos rios dentro deles,
uma garota destrava uma janela
anda sem sapatos em uma floresta,
seus cabelos escuros, uma bandeira ondulando na escuridão.

Ela entra na floresta, seus pés pisando luz
através de poças, sobre a terra dura,
através de colinas gramadas, sobre paus e seixos
sobre a areia encharcada de dia, pedras banhadas pelo sol
sobre lagos e riachos frios
através de ruas calçadas
praças escuras e pastos empoeirados.
Ela corre do nada, corre para o nada
além da dor, além de cemitérios e clareiras.
No escuro, os olhos de criaturas assustadas
brilham como uma manada de velas.
Eles espalham e dão à noite seu significado.

Qual o eco de um sino a embalou
que espírito, que cheiro de palavra
cuja tempestade a escreveu
quais bancos caíram para afogá-la
qual estrela do sangue
qual fio de água
que gota de luz
cujo coração está sendo lançado
cuja alma flutuante a seduziu
que promessa a fez
cuja memória a queimou
cuja oração ela correu para responder
cuja ajuda, que coágulo de tristeza
que dor represou dentro dela
qual parede ela deve reconstruir agora
cujo tesouro a chama
quem espalhou a hera como um véu para cegá-la?
As mentiras do alvorecer a acorrentaram a uma parede azul
de onde as estrelas caem
e perdem todo o significado.

Ela corre por aldeias que perderam seus nomes
estradas que perderam seus destinos
mares que perderam suas bússolas e marinheiros
rios que perderam seus pântanos e viajantes
casas que perderam seus dormentes e gritos
árvores que perderam suas músicas e sombras
jardins que perderam suas violetas e bancos
vales que perderam seus vermes e agricultores
montanhas que perderam seus profetas e saqueadores
templos que perderam seus pecadores e torres
relâmpago que perdeu sua prata e fios
quimeras que perderam suas pontes
minotauros que perderam suas fontes.
Luas crescentes pairam acima dela,
penas brancas antigas, sem pássaros, sem asas
perdidas para o seu próprio significado.

A música surge de sua visão.
Está uma parede coberta de musgos de prata.
Um clarinete soa uma égua ferida
violinos mulheres que perderam seus filhos.
Flautas sopram suas brisas quentes e secas.
Os tambores riem a risada incessante da terra.
Pianos estão murmurando feiticeiros
chamando espíritos e poderes.
Violoncelos mastigam os sons do trovão.
Dulcimers (*) pulam de muletas.
Pistas de dança piscam suas facas
ousando seus dançarinos.
Palavras se espalham pelas ruas como órfãos.
Então um alaúde começa a gemer
e o amanhecer perde seu significado.

Garota da noite, garota da noite
seu livro está cheio agora.
Você desenhou todas as fotos.
Você já viu muitas choradeiras.
Estrelas mantinham seu céu no lugar e luas
flutuavam em seus lagos e os lavavam.
Quando um pássaro canta
quando galhos orvalhados inclinam a luz solar para os olhos
quando as cortinas estão encharcadas de luz
quando espelhos se afogam nas sombras,
leve o seu dia para a praia, minha criança.
Coloque as palavras que dispararam o seu despertar,
espalhe-as na areia como sementes,
depois, com os pés, bata suavemente nelas
e deixe as ondas brilhantes
receber sua mensagem.


(*) Dulcimer - Instrumento de cordas originário do oriente médio e que chegou na Europa durante a Idade Média.


Original em inglês: Poetry Fundation



Khaled Mattawa, "Bedtime Reading para a criança não nascida " de Amorisco. 

Copyright © 2008 por Khaled Mattawa. Reproduzido com permissão da Copper Canyon Press, www.coppercanyonpress.org.
Fonte: Amorisco (Copper Canyon Press, 2008)