quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

DESPERTAR


Primavera pária 
sob a pilhéria mais óbvia
da chuva
caindo à cheiro marinho
pela cidade inerte,
como sob comoção de mortalhas.

Chuva que lava cavidades
crava e imprime calçamentos com gotas finas:
lambuza crianças-mendigas.

Primavera
mãe líquida das palavras.
Não faz diferença em que se sustente 
a ignorância das massas,
a desembocadura das estrelas botões violetas no estio,
o cobalto coberto de persistência,
a nascente cozinhando o frio bruto dos selvagens:
pátria dos príncipes descabelados,
quando a botar no papel as linhas que subvertem,
rompem com o silêncio lucrativo.

Para que servem as funções matemáticas perpetuantes da 
miséria ?
Para quem servem as funções matemáticas perpetuantes da 
miséria,
se nós temos o cristal último do crepúsculo descerrando 
montanhas de bronze,
a capa desabotoada da primavera úmida a nos 
abraçar,
os barcos de pesca parados como insistência do brilho
no começo do que era dia,
as levas de bromélias nos cascos e curvas da pedra,
o despertar dos frutos maduros, esperança 
de aluvião,
herança de ter de dizer o que tem de ser dito,
como vendaval que faz as veredas assoviarem canções de 
flautas,
nomes de santos e profetas,
luas de prata brocada,
versos que bebem justiça.

Insisto: 
vou  permanecer do lado de quem acorda caminhando no horizonte.

03/dez/13

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

POMAR DE LUAS NOVAS



Luarada:
cargas passam
e oriente desde já.

Para que confessar o que já está tão acordado?

Somos os derrubadores de paredes,
os sinos dobrados anunciando passarinhos.

Morar no mundo é como bater asas de cristal
onde as telas mais belas,
o deserto faz ao entardecer.

E quando a lua sobe e refresca
os olhos com seus cavalos de brilho,
e os lábios da fêmea
com pequenas palavras do gosto do damasco vêm nos acariciar,
é que podemos ser livres e caminhar na cidade abundante do instinto:
lastro de ouro passará à tramas laminadas de orvalho.

Lua
luaradara encaminhando o novo mundo
que pede à justiça, o argumento igualitário
arrombando portas,
o que de saída a bússola não mostra.

Somente o luaradaral,
pomar de luas novas, brotará contra
as farsas e dará ao homem que toma, sementes
de vento e de romã morena,
para que ele, em sua sede, horizontado
de ganâncias,
possa cair por si mesmo:
porque se ele aniquila a quem também ele mesmo explora,
só restará explorar a si, moto contínuo
até sumir inteiramente.

Mas pior do que o homem que toma,
muito pior, e como coiote à espreita da carniça,
é aquele homem que, entre nós, por pura covardia,
justifica e defende o homem que toma…

Luaradaral, luaradaral!
Pomar de luas novas!
Dois pesos e duas medidas,
isso um dia vai acabar.

Luaradaral, luaradaral!
Pomar de luas novas!
Quem defende o homem que toma
vai cair na própria armadilha.

Luaradaral, luaradaral!
Pomar de luas novas!
Fanfarreie homem que defende o homem que toma:
as  luas novas já estão por aí!

As novas luas!

06/nov/13

Álvaro Nassaralla

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

MISSISSIPI


Diante a vastidão do Mississipi,
apoiado em seus parapeitos quilométricos
pude ouvir sem beiradas,
palavras recortadas em negrito
palavras que ouvi no silêncio barulhento da mente:
– Sou um vagabundo em qualquer lugar do mundo

Diante a vastidão do Mississipi
ouvi o duradouro dos séculos
como as primeiras aulas que o tempo serve na bandeja da vivência
e a alma dizendo o que está há muito, muito tempo dizendo

Diante a vastidão do Mississipi
apoiado na mureta das margens, olhos na distância
num único pensamento translúcido,
limpo e azul como o volume imenso de água resignada
deslizando preguiçosamente em direção ao delta,
ouvi uma voz soprar por dentro do ouvido:
– Sou mesmo um vagabundo em qualquer lugar do mundo que eu vá

No instante,
milhões de almas azuis reuniram-se.
Juro que não tenho mais me metido em confusão:
minha paixão está mais calma.
Os pensamentos, confusos como sempre
mantendo-me ocupado demais,
sempre procurando uma nova saída

Nas margens do Mississipi, calmaria.
Os calados dos navios manobram a curva
do velho, manso rio

Próximo à margem,
aves habitam o assoalho terroso
saciadas ou esperando a hora certa de fisgar
seus peixes,
bem onde o gigante perdeu o pudor
e quase como que tocando um Dixieland de bordel
deixou, como rendas de putas,
seu leito aparente

Enquanto que eu
aprendiz dos aprendizes
não fixo um sequer saber em quem sou.
Sou o pior dos aprendizes
pois que me falta deslumbre,
sobra-me pó dos tempos.
Tenho o consolo dos milenares meretrícios e dos clarinetes
com seu som agudo-amadeirado

Mississipi
pai do pai das saudades
caudaloso manso azul
roçando seus ombros nos diques
soprando trompetes amanteigados quando desliza sob os deques
driblando seus ancoradouros no entardecer

– Diga-me, ó imenso velho Rio,
quem vive de alma, quem vive de orla, quem vive de margem?

– Ó grande Divindade! Um dia quis ser perfeito
e de perfeito, o que me sobrou
foi a mais completa correnteza,
mais luminosa desastrez. E você,
grande e manso, carrega sem peso
águas imensas e amontoadas

E ele me responde:
– Estou cansado. Venho rolando como línguas epilépticas a milhares
de milhas. Agora estou por pouco dando-me ao mar.
Quantas canções ainda para serem carregadas correnteza acima ou abaixo,
junto a corações partidos terei?

Seus navios passam carregados de cereais, talvez minerais.
A lua
completa de círculo
surge, bem na direção do delta

Apoiado em seus parapeitos,
não me sinto mais um vagabundo:
sinto-me amado, sinto-me lugar,
sinto-me novo de novo

Quantas luas estarão entre nós, novamente, ó Mississipi ?
Eu, diante sua imensidão
e você, escorrendo águas marinhas, pedras de água azul,
doces lâminas de abandono?

Ei, a vida é só de partida.
Cada dia uma nova vida.

Assim assina o Gigante azul

New Orleans 
De 13 a 27 de setembro de 2013


Vento de ressaca

Outubro
no sol
vento de ressaca invade minha
camisa, botando-a a dançar
desengonçada.

Outubro vento de ressaca.
Enxergo-te primeiro como elegante desespero,
despreparo da chuva que se foi
e o vento queimando a cidade com jasmins frios,
oxidados de uma nova primavera.

Fino manto
supõe distâncias,
vento malhado de cheiros que procura
a areia engomada,
que a procura da mais alta alegoria do céu:
vemos Vênus mexendo-se cintilante a dizer
que tudo se resume na noite que inda vem,
e a tarde passa
e eu estava apenas na beira do trilho,
e o trem passa na velocidade com que o barulho da batida se repete
nas emendas.

Pego no seio ensaguentado do vento
e num calhamaço de mariposas trajando poemas nos desenhos das asas
para que me palpitem esperanças aniquiladas.
E vamos à luxúria branca e ouro
que o vento traz desabotoando fêmeas de tantas longitudes
quantas possa o poeta amar.
E traz sementeiras e naufrágios
e ilusões gostosas de morder.
E não se vai o vento de ressaca
antes de arrancar algumas telhas e pétalas,
tudo ao seu tempo
para anunciar um novo sol companheiro.

Mas é punhal bandoleiro no coração
sensível,
desde que o próximo passo seja não se conformar
com as inverdades do mundo.
Posso dar meu urro de revolta ao vento,
somente mais um sedimento que ele já carrega,
somente mais uma duna movida de lugar.                                                                 

Que seja: uma duna movida de lugar já é alguma coisa.

Outubro, vento de ressaca.

Outubro é um trem veloz que passa e
deixa o cheiro de querosene nos trilhos.


09/out/13

sábado, 7 de setembro de 2013

Breve balada para o dono do mundo (ou para a minoria dona do mundo)



Sou poeta.
O máximo que posso fazer
é te causar um pequeno desconforto.
Mas se eu começar a incomodar
você paga para me difamar ou me matar.

Sou poeta
e você é o dono do mundo.
Sou poeta.
Sou nada para você.

É você quem me empurra sua cultura goela abaixo.
É você quem me empurra suas notícias todos os dias.
É você quem fabrica guerras para vender morte.

Sou apenas um poeta,
fabricador de ideias, palavras e sonhos e outonos flamejantes.
Para você, sou nada.
Poeta é o perdedor que foge da vida, foge da luta, não é mesmo?

Mas da sua luta,
que oprime e bombardeia um povo,
isso mesmo, vulnerável
e cheio de vida, um povo que merece
ser explodido só por que vive em cima de petróleo,
nessa luta, o poeta de verdade,
vai apenas usar a palavra,
sua mais vigorosa arma,
palavra que também pode fazer
sangrar,
palavra-espadachim,
palavra-AK 47,
palavra-resistência
que o poeta usa para te apontar:
– Covarde, mercenário,
você é o dono do mundo …

Álvaro Nassaralla /2011

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Wall Street e a servidão moderna

Pronunciando cais
vai a tarde morrendo
e vou nunca mais para casa
dirigindo por uma estrada estranha de mar e blue
de gris, salmos e pupilas.

Ipês roxos e amarelos brotam no acostamento
assustadores como luas enormes
aparecendo por trás dos relevos.

Nessa estrada,
com os olhos bem abertos e colados à fita do horizonte,
um dia vi a escravidão a que estamos expostos
as cortinas que escondem o entardecer gratuito
a assiduidade com que a verdade é comprada.

Pronunciando cais
o que ainda resta de tarde
de perfume a quem quer orvalho
laminando fugas para os lábios,
continuo a procurar saídas
mesmo que as palavras e as imagens
que,
pasmem,
pagamos para ler,
tentem nos desmentir.

Vamos.
Os umbrais da tarde estão desfalecidos:
lentamente escoram a noite e,
aos poucos,
colocam em dia a conversa madrepérola das estrelas.
Convém calar-se na furtiva hora do cais.

Queria poder dizer
que me perco numa estrada reta
para que outros possam se encontrar;
mas qual,
continuamos todos amordaçados por lenços
de liberdade falsificada,
de dinheiro retido como água podre, estagnada
dinheiro comprando dinheiro,
a cirandinha volátil das prateleiras de Wall Street nos gritando
nos xingando
e
nós
rindo para elas,
maravilhados com suas adagas anestesiadas.

Em tempo,
tudo
um dia se cala
para renascer desbocado,
dando novos e reais nomes às coisas
partilhando íris
as ramagens escorregando altivas nos altiplanos continentais
os poetas contrariando como sempre,
as crianças sentenciando,
a lua querendo,
abrindo-se irmanada de solidões.

Mesmo dizendo o que me vai no coração
quero ver o dia em que o papel-dinheiro será uma rosa,
ou arranjo de trigo perdigueiro
ou coleção de brotadas em flor.

Aviso:
vou nunca mais para casa.
Pelo menos,
enquanto não encontrar uma saída.

04/set/13

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Batismo do inverno

Folhas caem, nuvens passam, inverno se aborboleta.
Agarrei meus dias como fruta madura caída na relva,
como sardinha na boca da gaivota flanando por sobre
as letras da ressaca,
e o semblante da costa engolindo as ondas em fúria.

Há que existir o dia em que quando me disserem: – “Colha”,
eu plantarei e plantarei sem nunca parar para colher,
livre dos prejuízos e do egoísmo.
E quando a lua se pregar lata redonda no espaço,
astros seremos todos os que a terra habitam
e os poetas serão definitivamente desnecessários.
Nesse dia de abcissas,
dia diagonal decorado de espelhos arabescos,
avarandados
descortinados
de laranja virado, trans-azul
haverá felizes aves avicenas vidrando os faróis das ilhas
e ecoando seu grasnar confuso nas rochas que se dão beijos ao mar.

Sarar é próprio do sal.
Folhas caem batizando o inverno.
Dia aberto como azul-regata:
e podem as gaivotas, num desatino de tempo
viverem suas vidas inteiras,
e o incoerente do meu peito ir secando ao sol
desfraldando as bandeiras e a caligrafia da vadiagem,
fazendo transnudar o temor,
elogios em que os desenhos da tarde trançam-se abóbada,
luz, doural e semi-vogais paradas no ar,
para serem grandes profetas da imaginação
todos aqueles a que um dia como esse se destinassem aventureiros.

A fé se parece com um tapete ornado nômade.
Os tronos são as mentiras que não quero para mim.
As nuvens passeiam como se num eterno parque de diversões.
O canal deixa a maré entrar alegre.
O dia limpo lambe e se lambuza com sorvetes de safira.
O sol cor-de-saibro refrata-se, refinado, ao desenhar o remanso das ondas.

– Vento, vós que sois da forma exata do mundo e suas curvas,
diga-me, em que cota o mundo se inscreve ?
– Diga-me onde está a paz para quem é discípulo do vento ?
– Diga-me que, para quem está na busca, nada é por acaso?

Resta o desflorar como exercício de camadas,
o desnudar como ofício da palavra.

Se já estamos escritos, não sei.
Se já estamos na sina, também.

Mas o inverno avança!


20-21/ago/13
Álvaro Nassaralla

(Iniciado no Sarau Corujão da Poesia - Leblon - Livraria Saraiva)