quinta-feira, 30 de abril de 2015

Jornada Anil

A. Nassaralla 
(27/mar/15)


Foi ou não o total desprendimento
dos beijos hostis -
a pintar barcos de vidro contra o sol,
que nos fizeram vadios incorrigíveis?

Cá estou, bela negação.
O melhor que posso fazer
é calçar meus sapatos
e seguir carma, acaso e solidão.

Mal ou bem,
serão estrelas violetas
e rebarbas da noite açafrã
que abrirão trégua
entre o suor homicida das palavras
e a seda líquida das vaginas.

Continuo errante vida afora
mas não desejo paraíso algum:
apenas rubras luadas insolentes
e a sanha de, com asas,
maltratar ventanias ilícitas.

 Respondo por diques que liberam a selvajaria renascida
como feras recuando no iminente bote fatal ao mar.

Se amo, o incenso dos mascates estará ardendo
nos flancos dos caminhos.
No meio das saudades 
(de sabe-se lá que cor),
endureço flor.
A saber, o perfume das flores noturnas desmascara
o peito.

Onde hei de abrigar coração,
fruto podre, andorinha 
fazendo outono?

 Estou nos excessos. Corte-os e não mais me terá.

Sigo abrindo passagens 
quando vento a capela vem me procurar na hora céu.
Ele diz que vivemos em um tempo de mentira
esclarecida, de mentira educada,
que somos como papéis de parede
entre brinquedos e sucatas.

Volto às calçadas piratas
um tanto aberto ao descuido
e ponho-me diante do prazo,
com o verão vencido.

Digo que o novo é despetalar-se:
- Jornada anil, venha correr como um antílope 
e caça pelas paisagens nitidamente aberrantes,
tarjada de músculos quentes
e selvagem melancolia.

Venham
excessos
nos olhares enlaçados
pela rude ferida do amor
pálpebras alquebradas
auroras nos mapas:
o azul cobriu o rosa fúcsia!

A salvação está nos girassóis diáfanos
no azul guerreiro do teu sorriso
no desmedido leão doce do teu olhar
na libélula do futuro que nasce.

Futuro renasce.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

A PERDA DA AURÉOLA


A PERDA DA AURÉOLA (Charles Baudelaire)

“Olá! O senhor por aqui, meu caro? O senhor nestes maus lugares! O senhor bebedor de quintessências e comedor de ambrosia! Na verdade, tenho razão para me surpreender!”

‘Meu caro, você conhece meu terror de cavalos e viaturas. Agora mesmo, quando atravessava a avenida, muito apressado, saltando pelas poças de lama, no meio desse caos móvel, onde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, em um brusco movimento, escorregou de minha cabeça e caiu na lama do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que me arriscar a quebrar uns ossos. E depois, disse para mim mesmo, há males que vêm para o bem. Posso, agora, passear incógnito, cometer ações reprováveis e abandonar-me à crapulagem como um simples mortal, E eis-me aqui, igual a você, como você vê.”
“O senhor deveria, ao menos, colocar um anúncio dessa auréola ou reclamá-la na delegacia caso alguém a achasse.”

“Não! Não quero! Sinto-me bem assim. Você, só você me reconheceu. Além disso a dignidade me entedia. E penso com alegria que algum mau poeta a apanhara e a meterá na cabeça descaradamente. Fazer alguém feliz, que alegria! e sobretudo uma pessoa feliz que me fará rir. Pense em X ou em Z. Hein? Como será engraçado.”

sábado, 25 de abril de 2015

"Nenhuma busca, nenhum resgate"

Jehan Bseiso
Cairo, 24 abr 2015



Para as famílias e os apaixonados no fundo 
do mar, tentando chegar à Europa.

I.

Como é que vamos vencer a guerra e a pobreza apenas afogando em seu mar?

II.

Misrata, na Líbia
Habeebi, apenas pegue o barco.
Na sua frente, Cruzada.
Para trás, guerra.
E a fronteira, fechada.
Seu Mar, MareBahr. Nossa guerra, nossa Cruzada.

III.

Augusta, Itália
Onde está o intérprete?
Esta é minha família.
Papai, mamãe, bebê, todos molhados na costa.
Estes são 28 sobreviventes descalços e milhares de corpos.
Corpos sírios, Corpos
Somali, Corpos afegãos, Corpos etíopes, Corpos da Eritreia.
Corpos palestinos.
Seu Mar, Mare, Bahr. Nossa guerra, nossa Cruzada.

IV.

Alexandria, Egito
Habeebi, basta levar o barco.
Atrás de você, Aleppo e Asmara, bombas de barril e Kalashnikovs.
Na frente de você, um pouco de esperança.
Seu Mar, Mare, Bahr. A nossa guerra, nossa Cruzada.

V.

Mapas em nossas costas.
Longe de casa.



Adaptação do inglês para o português: Alvaro Nassaralla
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Jehan Bseiso é um poeta palestino, pesquisador e trabalha com assistencialismo atualmente com sede em Cairo. Twitter: jehanbseiso. 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

NUA





Lua.



Nua,
com'
pleta pintura no céu
pleta prata de luz
pleto mistério em placebo:
quando nada-nada em mim existia.

Quando nada de puro no homem,
há de lua pintada no céu
 franjas-prata por plena,
dama com os vagabundos,
morada das putas belas.

Beija a loucura e os perdidos,
pintura no céu,
repleta e luze.

 Beija criança mais lúcida 
que os pais.

Nua 
com'
pleta aprendiz vagabunda
pleta vadia das ancas 
pleta corsária a sotavento
pleta tremor no oceano 
pleta com a noite.


A. Nassaralla
11/jun/02

quarta-feira, 8 de abril de 2015

DE LESTE A OESTE, OS MAIS BELOS


Leste oeste
Parte primeira das saudades animais,
Outono
Parte resposta para quem procura dúvidas.

Poetas são ovelhas negras
Viciados em lua e paisagens solidões:
A antessala das desolações
Assim como o outono entra triunfante e vadio
Nos pátios e
Escorrega úmido pelos muros.

Leste oeste dos afagos e trocos
Sem parar para a chuva,
Para as pedras molhadas.

Já é outono!

Dançar livre daqueles mais lindos olhos que já vi.
Acordar e a colheita orvalhadeira
Madrugada linda do negro dos seus olhos, mais lindos
Impossíveis de profundos
Intragáveis de belos
Mistura de mato e cidade.

Leste oeste tamareiro,
De lua de quem vai falar o que não devia.
Atreve-se poeta
Aquele que ficou cantando o que não devia
Por causa dos mais belos negros olhos de fêmea
Desejo perfeito como o sol saindo do mar
Festa de cores no mar resistindo
As cores do céu malabarista da madrugada
O pedaço de céu do lado da noite.

A outra parte era você e seus solares olhos negros
Teciturando o interno de minhas veias
Quando no dia em que me vi inteiramente novo,
E já não era mais criança
E só na sua pele de azeite
Nas faíscas e nas alturas
E eu já não era mais a criança
Como sentir aquela confusão
Confissão de outono como colheita sem madurar
Chupar o azedo doce do fruto do café
Café da cor dos olhos mais lindos que já vi.
E amei.

A. Nassaralla
25/março/13


domingo, 5 de abril de 2015

Uma Lição de Desenho



Uma Lição de Desenho
Nizar Qabbani (Síria)


Meu filho coloca à minha frente sua caixa de tintas, e pede que eu lhe desenhe um pássaro...
Embebo o pincel na cor cinza, e desenho-lhe um quadrado com um cadeado... E barras.
Meu filho me diz, e o espanto preenche seus olhos: 
“Mas isso é uma prisão... Meu pai, tu não sabes desenhar um pássaro?”
Digo-lhe: “Meu filho, não me leves a mal, de fato esqueci a forma dos pássaros”. 

Meu filho coloca à minha frente, sua caixa de lápis, e pede que eu lhe desenhe um mar...
Apanho um lápis e lhe desenho um círculo negro...
Meu filho me diz: 
“Mas isso é um círculo negro, meu pai... Não sabes desenhar um mar? Não sabes que o mar é azul?”
Digo-lhe: “Meu filho, em meu tempo era perito em desenhar mares, quanto à hoje, levaram meu anzol, e o barco pesqueiro, proibiram-me o diálogo com a cor azul, e de fisgar o peixe da liberdade”.

Meu filho coloca à minha frente um caderno, e pede que eu lhe desenhe uma plantação (espiga) de trigo... 
Apanho a caneta e desenho-lhe um revólver...
Meu filho debocha de minha ignorância nas artes plásticas, e diz surpreso:
“Não conheces a diferença entre o trigo e o revólver?”
Digo-lhe: Meu filho, no passado, eu conhecia a forma do trigo, do pão e da rosa... 
Mas neste tempo metálico, em que as árvores da floresta se uniram aos homens das milícias, e em que a rosa passou a vestir roupas camufladas, no tempo das espigas armadas, dos pássaros armados, da cultura armada, e da religião armada... Não há pão que eu compre que não contenha um revólver. 
Não há flor que eu colha no campo, que não aponte um revólver para minha face. 
Não há livro que eu compre que não venha a explodir entre meus dedos...

Meu filho senta-se na borda da cama, e pede que eu lhe recite um poema... 
Uma lágrima minha cai no travesseiro... 
Ele a apanha perplexo, e diz: “Mas isso é uma lágrima meu pai, e não um poema”.
Digo-lhe: “Quando cresceres, meu filho, e leres uma antologia de poesia árabe, saberás que a palavra e a lágrima são irmãs, e que a poesia árabe, nada mais é, do que uma lágrima que emerge dentre os dedos”

Meu filho coloca à minha frente suas canetas e sua caixa de tintas, e pede que eu lhe desenhe uma pátria... O pincel estremece em minha mão... E caio chorando...